top of page
Search

Espiritualidade engajada

  • Nícolas Murta
  • Sep 12, 2017
  • 7 min read


Antes de iniciarmos qualquer estudo, importante lançar luz sobre o conceito a ser trabalhado. Espiritualidade engajada se refere a pessoas religiosas, espirituais (ou simplesmente comprometidas com o desenvolvimento de virtudes e abertas ao mistério da realidade) que se envolvem ativamente no mundo cooperando uns com os outros, sensíveis às necessidades e aos sofrimentos dos seres vivos. Nesse processo almejam transformar a realidade de maneira positiva e benéfica para todos os seres, buscando nutrição, inspiração e orientação em suas crenças, práticas espirituais ou métodos laicos de desenvolvimento pessoal.


Um grande desafio - alguns chamam de dilema - que o mundo enfrenta é como ser moderno. O discurso do desenvolvimento, especialmente por meio do conceito de modernização, é decididamente tendencioso. Pode-se dizer que o precursor intelectual da modernização foi a iluminação européia. Nesse contexto, o conceito de modernização tradicional é codificado, mental e linear, eis que baseado em uma visão de mundo específica que não é, de modo algum, a única explicação. A visão de mundo dita moderna, racional e positivista é frequentemente passada como a perspectiva mais legítima, por mais antiquada que talvez seja atualmente. Para a maior parte da humanidade este é um grande problema, até mesmo porque as mais recentes descobertas ciêntifica apontam para o caos/ordem, visão sistêmica, auto-organização e não-dualidade como fatores mais aptos a nortear a ação humana. A promessa de emancipação através do crescimento econômico contínuo e avanços tecnológicos também tem sido uma esperança vã. A economia nunca pode crescer o suficiente; os avanços tecnológicos nunca podem ser suficientemente sofisticados; um estado nunca pode ser suficientemente forte; e assim por diante. Diante desse vácuo, busca-se amparo nas tradições antigas que por muitos anos orientaram dinâmicas de reinos prósperos e civilizações nas quais a felicidade e abundância eram as principais preocupações.


Chogyam Trungpa Rinpoche afirmava a inseparabilidade do passado, presente e futuro. Rinpoche ensinou que não só nossas ações passadas, nosso karma, determinam nossa condição atual, mas também o nosso futuro karma, de certa forma, determinará quem somos agora. As coisas que aspiramos influenciam seguramente nossas ações hoje. Da mesma forma, nossas aspirações espirituais determinam nosso futuro, determinam a pessoa que nos tornaremos. Como a régua máxima da vida espiritual é a conduta, cabe ponderar sobre 14 princípios nos quais podemos nos apoiar ao agir ativamente para transformar a sociedade e o mundo.


1 - Reconheça sua identidade real= Atenção-Consciente Amorosa (Loving Awareness). Enquanto existir identificação com formas e pensamentos limitantes, o sofrimento será perpetuado. O despertar acontece quando você se identifica com o terreno imutável do ser, aquilo que nunca muda, sua verdadeira natureza: Atenção-Consciente Amorosa. Após reconhecer, esforce-se para manter a identificação de forma constante e inquebrável, eis o resumo de todo o caminho espiritual segundo o Dharma não-dual. Interaja ativamente com a realidade e permita que padrões limitantes evaporem pelo atrito seguido da não-resistência. Automaticamente os hábitos compulsivos serão erradicados e virtudes emanarão.


2 - Encontre uma narrativa mais alinhada com a realidade suprema. No processo de contemplação da realidade e auto-observação percebemos que muitas histórias que carregamos e seguramos firmemente não traduzem com fidelidade as coisas como elas são. O pior é que com o tempo, tais histórias se tornam um filtro que nos impossibilita de ter acesso a realidade nua. Nesta situação existem dois caminhos, que não são necessariamente excludentes um do outro: o primeiro seria tentar engajar diretamente com a realidade aconceitual das sensações e experiências cruas, com a qualidade inata do momento. O segundo seria encontrar um conjuto de histórias mais alinhadas com a realidade, preferencialmente não dogmáticas (seja em tradições espirituais duais ou não-duais, filosofias ou métodos cientificos e terapeuticos), sabendo que tais histórias devem também, em algum momento, culminar na experiência absoluta aconceitual da realidade suprema.



3 - Abra-se para os poderes do arquétipo da heroína/herói. Na visão do Dharma não-dual - bem como em diversas outras tradições - é utilizado o arquétipo do herói/heroína para o desenvolvimento de virtudes. No budismo mahayana e vajrayana tais qualidades são atribuídas ao nome bodhicitta, a mente desperta e iluminada movida pela compaixão e amor a todos os seres. Pode-se utilizar também a figura do samurai desperto que, apesar do mérito que repousa em suas habilidades de combate, permanece ausente de qualquer raiva ou agressividade e, munido de coragem e perseverança extremas, move-se pelo mundo com o coração aberto e vulnerável, mantendo como único propósito ajudar os que sofrem, com amor e cuidado incondicionais.


4 - Transformação da motivação da raiva / medo / desespero para a compaixão / amor / propósito. Este é um desafio vital para o movimento de mudança social de hoje. Isso não é negar a nobreza de uma emoção como ira ou indignação adequadas diante da injustiça social. Em vez disso, implica uma mudança crucial da luta contra o mal para o trabalho com amor, e os resultados a longo prazo são muito diferentes, mesmo que as atividades externas pareçam virtualmente idênticas. Ação segue o Ser, como diz o apelo Sufi. Assim, "um futuro positivo não pode emergir da mente da raiva e do desespero" (Dalai Lama).


5 - Não vinculação ao resultado. Isso é difícil de pôr em prática, mas na medida em que nos apegamos aos resultados do nosso trabalho, nos elevamos e caímos com nossos sucessos e fracassos - um caminho certo para o esgotamento. Tenha uma clara intenção e se desapegue do resultado, reconhecendo que uma sabedoria maior está sempre operando. Como Gandhi disse, "a vitória está em ação", não os resultados. Além disso, permaneça flexível diante das circunstâncias em mudança: "O planejamento é inestimável, mas os planos são inúteis" (Churchill).


6 - A integridade (dignidade) é sua proteção. Se o seu trabalho tem integridade e dignidade isso tenderá a protegê-lo de energias e circunstâncias pesadas e desafiantes. Muitas vezes, você pode evitar a energia densa e perniciosa dos outros tornando-se "transparente", permitindo que ela passe por você sem efeito adverso. Esta é uma prática de atenção que pode ser chamada de "aikido psíquico". Integridade deve ser aplicada nos meios e nos fins. A integridade nos meios cultiva a integridade no fruto do seu trabalho. Um objetivo nobre dificilmente será alcançado utilizando meios ignóbeis.


7 - Não demonize seus adversários, ame-os profunda e sinceramente (mesmo que não verbalmente). Julgar, comparar ou analisar torna os outros mais defensivos e menos receptivos aos seus pontos de vista. As pessoas respondem à arrogância com sua própria arrogância, criando polarização rígida. Seja um aprendiz perpétuo e desafie constantemente seus próprios pontos de vista. Por sua vez, desenvolva compaixão por todos, ciente de que todos fazem o melhor possivel de acordo com suas limitações individuais. Seja duro com os problemas, suave com as pessoas. Perceba a futilidade da necessidade de estar certo e experiencie profundamente o campo do ser, além dos opostos de certo e errado.


8 - Você é único, conheça suas aptidões natas, encontre e preencha seu verdadeiro chamado. Quando você busca o caminho dos outros, você não vitaliza o seu próprio caminho."É melhor seguir o seu próprio caminho, por mais humilde que seja, do que o outro, por mais que seja bem sucedido que seja" (Bhagavad Gita).

9 - Seu trabalho é para o mundo, não para você. Ao fazer o serviço, você está trabalhando para outros. A colheita completa do seu trabalho pode não ocorrer em sua vida, mas seus esforços agora possibilitam uma vida melhor para as gerações futuras. Deixe sua realização vir da gratidão por ser chamado a fazer este trabalho, e fazê-lo com a mais ampla compaixão, autenticidade, fortaleza e perdão que você possa reunir.


10 - O serviço desinteressado é um mito. O altruismo extremo é o egoismo não-dual. Ao servir os outros, servimos o nosso verdadeiro eu, o campo indivisível e sempre presente da Atenção-Consciente Amorosa. "É em dar que recebemos". Somos sustentados por aqueles que servimos, assim como somos abençoados quando perdoamos os outros. O trabalho de serviço é um interesse pessoal esclarecido, porque cultiva um sentido ampliado de si próprio que inclui todos os outros.


11 - Não se isole da dor do mundo, sinta-a profundamente e permita que ela te transforme. Proteger-se da falta de amor dificulta a transformação. Deixe seu coração abrir e aprenda a se mover no mundo com um coração partido. Como Gibran diz: "Sua dor é o remédio com o qual o médico interior te cura." Quando nos abrimos para a dor do mundo, nos tornamos o remédio que cura o mundo. Um coração partido torna-se um coração aberto, assim a verdadeira transformação começa.

12 - O que você contempla, você se torna. Sua essência é flexível e eventualmente você se torna aquilo sobre o qual você foca sua atenção mais profundamente. Você colhe o que você semeia, então escolha suas ações com cuidado. Se você se envolver constantemente em batalhas, você vive o conflito e a guerra. Se você constantemente dá amor, você se torna o próprio amor. Tenha, portanto, boas referências, amigos e arquétipos.


13 - Confie na realidade e deixe de ter que saber como tudo funciona. Há forças complexas atuando a todo momento, nas quais podemos confiar completamente sem saber suas operações ou agendas precisas. Confiança (ou fé) significa confiar no desconhecido e oferecer-se como um veículo para a benevolência intrínseca do cosmos. Confiança significa entrega. "O primeiro passo para a sabedoria é o silêncio. O segundo é ouvir." Se você realmente perguntar internamente, ficar atento a orientação, e depois segui-la com cuidado, você está trabalhando de acordo com essas forças maiores, e você se torna o instrumento para a música da realidade suprema.

14 - O amor cria a forma. Não o contrário. O coração atravessa o abismo que a mente cria e opera em profundidades desconhecidas pela mente. Na tradição do Shakta-Shaiva Dharma utiliza-se o termo coração-mente, um nunca está separado do outro. Não fique preso pelo "pessimismo sobre a natureza humana que não é equilibrado pelo otimismo em relação à natureza divina, ou você negligenciará a cura da graça". (Martin Luther King). Deixe o amor do seu coração infundir seu trabalho e você não pode falhar, no entanto seus sonhos podem se manifestar de maneiras diferentes do que você imagina. Aceitar o mistério faz parte da sabedoria. A realidade sempre manifesta de formas inusitadas, da maneira mais benefíca para nutrir todos os seres.



 
 
 
Posts Em Destaque
Posts Recentes
Arquivo
Procurar por tags
Siga
  • Facebook Basic Square
  • Twitter Basic Square
  • Google+ Basic Square
bottom of page