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Até que ponto de fato dispomos de poder de escolha? — trazendo um antigo debate.

  • Christopher Wallis (Hareesh)
  • Aug 22, 2017
  • 8 min read


Nas tradições espirituais da Índia, há dois ensinamentos aparentemente opostos:


  1. não é você quem age, diz o Bhagavad Gītā -- por que sua parte espiritual é uma testemunha pura e inativa, e a sua parte física/mental é simplesmente a natureza, e a causa única das operações da natureza é Deus, (ou as leis naturais impessoais, de acordo com a filosofia Samkhya e a ciência moderna); e

  2. o Ser Divino, o seu Eu verdadeiro (para além da mente e da personalidade), é o Ator solo, dizem os Śiva-sūtras, por que em essência você é eternamente unificado com o Divino; e é Você sozinho quem executa a criação e a dissolução de sua própria realidade. (Pratyabhijñā-hṛdayam).

Como podemos reconciliar esses ensinamentos aparentemente opostos? Venho contemplando essa questão por vinte anos e apenas agora sinto que começo a entendê-la.


Minha mãe, uma pessoa muito perspicaz, me fez essa pergunta nos termos da escolha e da autonomia, provocada pela leitura de meu livro, Tantra Illuminated: “Ao fim da seção sobre a teodicéia você cita Victor Frankl, que fala sobre transformar a tragédia pessoal em triunfo - aprendendo a mudar a nós mesmos - ele fala sobre a escolha da própria atitude e caminho - e você menciona o poder da autonomia. Mas recentemente te escutei dizendo que nós na verdade não temos o poder da escolha como de fato pensamos que temos - e eu gostaria que você falasse mais sobre isso. Parece uma contradição. O que me lembro de suas palavras é que nosso cérebro desenvolve uma certa forma de influência sobre a maneira como agimos e nos contemplamos as coisas — no entanto, tenho me observado dia após dia tomando decisões que permitam que minha mente se foque em uma coisa ou outra - tomar uma ação ou outra. Parece para mim que a escolha entra em cena. Sem que nos tornemos atentamente conscientes de que podemos escolher ao parar e refletir, como será que as pessoas podem aprender a mudar as coisas por si mesmas?”


Essa é, sem dúvidas, uma das questões do espírito mais sutis porém cruciais. Por um lado, sabemos que o Tantra enfatiza o Poder da Autonomia (svātantriya-śakti) como o poder central da Atenção-Consciente e que quase todas as filosofias espirituais enfatizam a escolha como o locus do auto-melhoramento e de nossa oportunidade para abrir caminho em direção ao dharma (a ação correta); e por outro lado, à medida em que a ciência da neurologia se aperfeiçoa, mais e mais declara-se que não há um mecanismo neural que corresponda ao livre arbítrio, que todas a ação provêm de condicionamentos e de que o que parece ser a escolha não passa de dois pedaços de condicionamentos em disputa, com o infimamente mais forte vencendo inevitavelmente. (Sobre o assunto, veja o livro de Sam Harris “Free Will” além do trabalho recente de Ezequiel Morsella).


Mas essa não é na realidade uma oposição entre a religião e a ciência: achamos a mesma oposição aparente mesmo na tradição Shiva tântrica mesma. Já que ela declara que a ação individual é uma ficção, de que há apenas um agente, um que executa todas as ações; Deus, a Consciência divida universal, a causa só de tudo. Em outras palavras (já que na visão não dual Deus não é concebido como uma pessoa ou personalidade) há um padrão de fluxo de energia individual ou “inteligência” que está na base de tudo (ou pelo menos, tudo no mundo da consciência, que é tudo a que temos acesso); e seu fluxo prova sempre, a um momento ou outro, ser irresistível.


Nessa visão, nossa jornada espiritual acontece mais ou menos assim: por conta do amadurecimento de seus karmas você se torna pronto para o caminho espiritual e assim encontra o caminho e acerta sua visão acerca do despertar e/ou da liberação (já que todas as almas são destinadas a formar essa intenção mais cedo ou mais tarde, sendo esse o processo natural de descoberta de sua verdadeira natureza). Então os ensinamentos desse caminho começam a te recondicionar, deixando novos samskāras que são benéficos. Dessa maneira segue-se um período no qual parece que você está repetidamente sendo desafiado a escolher entre seus condicionamentos mais antigos (digamos, abrir uma cerveja ou assistir televisão) e seus novos (comer uma salada orgânica, escrever em seu diário sobre o que você aprendeu naquele dia e ir para a cama mais cedo, digamos). Mas na verdade você está perdendo muita energia ao conceber tudo isso como uma escolha e até mais por se culpar por fazer escolhas “erradas" quando você “sabe melhor”. O que de fato está acontecendo é que dois grupos incompatíveis de condicionamentos estão se atropelando buscando uma posição e você não está de fato com o controle sobre qual está a frente em certos momentos como pensa estar. Sua visão de si mesmo como “aquele que escolhe” e pode fazer uma escolha errada não é nada além de um construto mental; e um construto que curiosamente não te serve na maioria das vezes — por que quando uma escolha errada é possível, a escolha pode se tornar um peso opressivo; e, uma vez feita e no passado, uma escolha “errada" se torna uma fonte de culpa e raiva de si. A meu ver é claro e lúcido que isso não passa de pura insanidade e de uma grande perda de energia. A todo momento cada um de nós está fazendo o melhor que pode com o que sabemos e a energia que nos está disponível. O ser que toma o crédito e a culpa pelo “certo" ou “errado" é uma mera ilusão; o que chamamos de ego. No entanto, a tradição ensina o que parece ser uma contradição: olhando para trás (num momento ou uma vida como um todo) você não poderia ter feito nada de diferente; olhando para frente, você pode desenhar seu destino. Como ambas as afirmações podem ser verdadeiras (já que sabemos à partir da física que o futuro não é de fato qualitativamente diferente do passado)? É aí que tudo se torna delicado.


Primeiramente, reconheça que você de fato tem poder: você (como indivíduo) não tem poder para controlar o resultado de nenhuma situação dada, em hipótese alguma. (Lembre-se do ensinamento na Primeira Parte de que há apenas um Agente, e este não é você — pelo menos não o você que pensas ser). Assim sendo, a parte do condicionamento que vence uma dada batalha na sua mente não está de fato sob seu controle. No entanto, o que você pode fazer é dar mais e mais energia às verdades e valores que você deseja que sejam vitoriosos em longo prazo; isto é, você pode fortalecer seus condicionamentos espirituais que simultaneamente irão enfraquecer seus antigos condicionamentos auto-derrotistas. Você faz isso clareando sua aspiração; lembrando a si mesmo a cada momento do que você realmente quer nas profundezas de seu coração. Também é importante não se tornar entorpecido em seu próprio sofrimento através da distração, pois estar em contato com o seu sofrimento é um dos lembretes mais efetivos do que Você realmente quer. Quanto mais intensamente sua chama de aspiração queimar, mais fácil será para que os condicionamentos mais novos e frescos vençam (pois aqueles caminhos são potencializados com mais energia, em termos neurológicos). Foque-se na aspiração mais do que se preocupa em “fazer a escolha correta”.


Mas, chega a objeção, esse foco não envolve a escolha de fortalecermos nossos condicionamentos espirituais? Em certo sentido, sim, mas não uma decisão individual — você está simplesmente deixando a Vida fazer o que quer através de você (saber de si inteiramente); você está permitindo que Deus faça seu caminho com você, como deve ser. Por fim, você verá que esse processo é inevitável, com uma conclusão precedente. Você não pode bagunçar tudo. Nesse sentido, a escolha é uma ilusão. Quando você dá energia à essa ilusão (e.g preocupações), seu processo vai mais devagar, como sempre ocorre quando suas crenças estão fora de alinhamento.


Há, é claro, um passo para além disso. Os ensinamentos espirituais (em sua melhor forma) geram um padrão condicionante que espelha de forma mais eficaz o padrão da própria realidade. Mas a tradição não ensina um escape final (mokṣa) de todos os condicionamentos, uma fusão com o padrão em si mesmo, livre da necessidade de “espelhos”? Sim. Eventualmente os ensinamentos que você internalizou devem se dissolver na experiência direta do fluxo divino. Nesse estágios os ensinamentos não são mais necessários, já que você incorpora seu espírito, sua fonte; e sua articulação verbal parece um absurdo ou uma aproximação pálida, na melhor das hipóteses. Agora não há mais luta ou debate, e curiosamente não há também a ilusão da escolha — já que para o ser livre há apenas uma coisa a se fazer em cada momento e não há necessidade de determinar mentalmente o que. Essa coisa está nua e crua diante de você, brilhando de tão apropriada, a cada momento. E aqui chegamos no maior dos paradoxos (da perspectiva da mente) — o ser desperto vivencia o Poder da Autonomia como a essência de Ser, e mesmo assim nunca se percebe como tendo uma escolha (exceto quando não há nenhuma consequência significativa de nenhum dos lados). Mas esse paradoxo aparece apenas se nós definirmos a escolha como “Eu poderia escolher A ou Eu poderia escolher B”. O que o ser desperto vivencia é que Deus/a Vida/a Consciência escolheram com entusiasmo se tornar o todo do presente momento, e isso, dadas as infinitas possibilidades, escolheu se submeter ao padrão (às leis) desse universo e finalmente, escolhe consistentemente fluir em direção à ação que é de maior benefício para todos os seres, momento a momento, o que explica por que “opções” no sentido convencional não surgem para o ser desperto.



Então, vamos resumir. No discurso diário sobre espiritualidade, professores e coaches como eu dizem às pessoas “você tem o poder da escolha, de se tornar saudável, de desenhar seu destino,” e dizemos isso por que queremos empoderá-los. Mas isso também pode produzir efeitos negativos, por que oferece o fardo de se fazer a escolha “correta" e estabelece um padrão de auto-julgamento e auto-condenação por não se ter acertado, o que pode se voltar contra outras pessoas (afinal, quem julga mais do que uma pessoa religiosa? yogis não são exceção). Além disso, nega-se a verdade fundamental de que o indivíduo não tem controle sobre o resultado de nenhuma situação dada, incluíndo como sua mente e corpo respondem a estímulos. O corpo-mente age sob condicionamento — você não pode nem escolher que pensamentos irão brotar em sua cabeça, quem dirá as ações. Algumas vezes você dirige uma corrente de pensamentos, mas a grande maioria dos milhares de pensamentos diários não são pré-selecionados por você. No nível do corpo-mente você está apenas reagindo constantemente aos estímulos com base na programação. Se dois conjuntos de programação oferecem duas respostas diferentes a uma situação (e.g. socar alguém ou dizer “estou muito nervoso agora”), a programação que for ativada com mais força vencerá. Lembre-se, o sentimento de que você está escolhendo não faz com que você de fato o esteja (experimentos mostraram que o cérebro faz uma escolha antes de você estar de fato consciente dela). Tendo dito isso, quando dois pedaços opostos de condicionamentos são iguais em força (o que é raro), você deve ser capaz de “inclinar a balança” em um “ato de vontade” vindo de um lugar mais profundo (um pequeno espaço para o livre arbítrio aqui). A tradição diz que dois karmas em oposição mas de igual força criam a oportunidade para se atingir a graça (veja, e.g., Kirana-tantra).


Mas mais importante do que tudo isso, você de fato TEM uma escolha empoderadora que pode fazer uma GRANDE diferença a longo prazo, de duas maneiras significativas:


1) você pode escolher o seu “ângulo de percepção” para adotar na situação presente. Em outras palavras, você pode escolher como olhar para isso, e cada forma de olhar irá gerar automaticamente uma atitude ou estado energético correspondente. Então, escolher o seu ângulo de percepção é escolher sua atitude, e algumas atitudes dão mais energia para trabalhar. Isso é crucial. (É claro, você se lembrar-se de escolher o seu ângulo de percepção e ter a energia para fazer isso em cada momento está totalmente além de seu controle. Então não há razão para se culpar ou vangloriar, novamente).

2) Você pode escolher recondicionar a si — você pode continuar absorvendo os estímulos (e.g., a companhia de pessoas despertas e seus escritos) que irão eventualmente e inevitavelmente resultar numa reconstrução radical de todo o seu ser; especialmente ao focar-se naqueles estímulos que esclarecem e revigoram sua aspiração mais profunda.


Se os dois exemplos realmente “constituem" ou não uma escolha livre é irrelevante, por que considerá-los como estando dentro do poder da escolha é altamente eficaz de fato. Tanto 1) como 2) são exemplos de como escolher para aonde levar sua atenção. E aqui nós vemos por que o “Poder da Autonomia” (svātantrya-śakti) é o poder atribuído à Atenção-Consciente, ao invés da mente ou do corpo. O ato simples e sutil de para onde apontamos nossa atenção é onde mais podemos exercitar nossa liberdade — e a agregação dessa simples escolha, com o tempo, no fim, tem o poder de desenhar nosso destino.



 
 
 
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